A recomposição da Comissão de Anistia por parte do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania foi comemorada pelo Grupo Tortura Nunca Mais e pelo Instituto Vladimir Herzog, que defendem que a equipe escolhida precisará rediscutir pedidos indeferidos e avançar com os que se acumulam após um período que classificam como de paralisação dos trabalhos de reparação às perseguições cometidas pelo Estado brasileiro entre 1946 e 1988, o que inclui a ditadura militar.
A legislação prevê que uma série de violações deve ser reparada quando é comprovada a motivação exclusivamente política, como transferências forçadas de local de trabalho, demissões e afastamentos de servidores públicos, cassação de aposentadoria e de mandato político. A comissão avalia esses pedidos de reparação e emite um parecer reconhecendo a perseguição e declarando a vítima como anistiado político.
A portaria que recompôs a comissão foi publicada na última terça-feira (17) no Diário Oficial da União, nomeando 16 novos integrantes. A nova presidenta da comissão é a jurista Eneá de Stutz e Almeida, professora da Universidade de Brasília e especialista em Justiça de Transição, conceito que lida justamente com os processos necessários para superação de um regime autoritário. Dentre as medidas que compõem essa ideia estão a busca pela verdade sobre as violações, as reparações simbólicas e financeiras às vítimas e a responsabilização por abusos cometidos no período autoritário. A advogada já havia sido membro da comissão durante quase dez anos.
O membro da diretoria colegiada do grupo Tortura Nunca Mais, Rafael Maul, disse que a recomposição da comissão com integrantes ligados à defesa dos direitos humanos não é uma surpresa e retoma o perfil que o órgão teve quando foi criado no fim do governo Fernando Henrique Cardoso, e que permaneceu nos dois primeiros mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva e nos dois mandatos de Dilma Rousseff.
“Mesmo esperada, é uma atitude a ser apreciada. Essa recomposição é muito importante, de fato, depois desse último governo, com a destruição de tantas políticas públicas, e especialmente nesse caso das políticas públicas de memória e reparação. É um passo importantíssimo.”
Apesar da crítica direta ao trabalho da comissão no governo de Jair Bolsonaro, medidas implementadas desde o mandato de Michel Temer já haviam sido apontadas como retrocessos por defensores dos direitos humanos. Em 2016, o Movimento por Verdade, Memória, Justiça e Reparação repudiou uma intervenção do governo Temer na comissão, quando 19 dos 25 membros do grupo foram substituídos e, entre os indicados, havia nomes apontados como simpatizantes da ditadura militar.
Quatro mil pedidos negados
Ao nomear a nova equipe da comissão, porém, o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania destacou que a principal missão da comissão será reverter a interferência política propagada desde 2019, quando teve início o governo Bolsonaro. O ministério indica que a descaracterização do conceito de reparação integral levou ao indeferimento de 95% dos casos analisados entre 2019 e 2022, com um total de 4.081 processos negados.
“Os prejuízos a gente só vai conseguir dimensionar nos próximos anos, porque têm prejuízos profundos”, avalia Rafael Maul. “O Brasil é um país que caminha em passos muito vagarosos nas políticas de reparação. E, nesses últimos anos, o que se fez aprofundou tudo que a gente tinha de pior e trouxe mais entraves inclusive na construção de uma memória na sociedade que pudesse transformar e reparar de fato.”
O diretor do grupo Tortura Nunca Mais ressalta que é preciso rever os indeferimentos e avançar na análise dos que aguardam parecer. E o tempo pesa contra as vítimas, que muitas vezes estão em idade avançada.
“Se a gente já precisava anteriormente de uma maior velocidade, e, claro, têm muitas dificuldades para realizar isso, com seis anos de inoperância, seis anos de políticas contrárias àquilo vinha sendo construído, isso atinge diretamente a vida das pessoas que deixam de estar entre nós, não recebem essa reparação em vida, e nem seus parentes. É muito grave a inoperância em uma comissão como essa.”
O trabalho da comissão, na visão de Maul, deve alimentar uma visão de memória e reparação vivas, que sejam articuladas com o presente para reconhecer no Estado brasileiro de hoje as violações aos direitos humanos que permanecem contra minorias, grupos vulneráveis e estigmatizados. Ele acrescenta que a construção social da memória sobre essas violações também vai permitir que mais pessoas reconheçam que foram vítimas de perseguições e ações autoritárias do Estado.
“A política de memória precisa avançar para que as pessoas entendam que as atingidas pela ditadura militar e principalmente pela violência de Estado não são só aquelas que estavam em militância política organizada. A gente tem milhares e talvez milhões de pessoas que foram atingidas, e elas próprias e seus descendentes não se veem neste lugar de reparação e não se veem como atingidas porque nosso país não constrói uma política de memória que ajude as pessoas a se verem na história.”
Ataques à democracia
O diretor executivo do Instituto Vladimir Herzog, Rogério Sottili, concorda que a falta de memória sobre ditadura militar deixa não apenas cicatrizes na sociedade brasileira, mas alimenta novos ataques aos direitos humanos e à democracia, como os realizados em 8 de janeiro, quando golpistas invadiram e depredaram as sedes dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário na expectativa de que as Forças Armadas depusessem o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
“O Brasil não promoveu uma justiça e transição e permitiu que uma parcela importante da sociedade brasileira fosse fundada por uma cultura de violência, especialmente naturalizando a violência do Estado. E isso resultou no 8 de janeiro, com ameaças à democracia, ameaças violentas”, afirma. “O Brasil vive um momento tão delicado porque não fez sua tarefa de casa como tinha que ter feito a partir da redemocratização.”
Sottili avalia que o processo de reparação estava em uma crescente quando foi interrompido, a partir de 2016, e isso provocou perdas que não poderão mais ser corrigidas no caso dos processos indeferidos.
“Provavelmente foram perseguições políticas. Como são pessoas que têm a idade avançada, é bem provável que algumas dessas pessoas tenham morrido e não vão ter sua reparação simbólica nem econômica atendida em vida. Isso é uma perda irreparável.”
Apesar disso, ele defende que é preciso olhar com otimismo para a oportunidade que se abre de promover políticas de reparação com a nova nomeação e o contexto que reúne os Três Poderes em defesa da democracia.
“A ideia de reparação simbólica e integral está muito mais viva. Tanto no governo, quanto na sociedade brasileira, por conta de tanta violência sofrida nesses últimos quatro anos, e especialmente a violência contra a democracia. O entendimento e a avaliação que se tem dos militares no Brasil nunca esteve tão crítica quanto neste momento, por conta da confusão que se fez nos últimos quatro anos e também pela tentativa do Bolsonaro de ressignificar a ditadura militar”, afirma. “É uma oportunidade de voltar agora, em um processo com muito mais força e simbologia, com essa reparação integral com muito mais apelo social e político.”