Desde fevereiro deste ano, o Instituto Marielle tem nova diretora. A advogada Lígia Batista, de 29 anos, assumiu o cargo depois que Anielle Franco, irmã da vereadora assassinada em 14 de março de 2018, aceitou o convite para comandar o Ministério da Igualdade Racial. Lígia tem a responsabilidade de dirigir uma instituição criada ainda em 2018 para preservar o legado de Marielle e pressionar as autoridades que investigavam o caso. A instituição cresceu e se propõe hoje a liderar projetos de inclusão de mulheres negras e pessoas oriundas de favelas em postos de poder no país.
A nova diretora se formou em direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF) em 2016 e faz mestrado em políticas públicas em direitos humanos na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A pesquisa acadêmica é voltada à representação de mulheres negras na política. Ela trabalhou durante quase seis anos na Anistia Internacional e quatro na Open Society Foundations (rede internacional de filantropia). Lígia conheceu Marielle Franco quando a parlamentar integrava a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) com Marcelo Freixo, antes mesmo de se eleger vereadora em 2016. Ela se tornou uma inspiração para a advogada, que assume agora a nova responsabilidade com orgulho e carinho especial.
Agência Brasil: Como foi construída sua trajetória profissional e intelectual até aqui, antes de chegar ao Instituto Marielle? Você sempre atuou na área de direitos humanos?
Lígia Batista: Começo a me entender a partir da faculdade de direito. Eu considerava a possibilidade de atuar no sistema de Justiça, em alguma função como defensora pública, promotora, juíza, mas nunca consegui me perceber tão confortável nesse tipo de lugar. Até porque o sistema de Justiça reproduz várias coisas que me afetam em vários sentidos, tanto no que se refere ao que significa ser uma pessoa preta ali dentro, ser uma mulher, ser uma pessoa jovem. Eu não me sentia confortável com a ideia de estar ali dentro. Ainda que eu ache super importante que tenhamos pessoas comprometidas em transformar o sistema por dentro. Mas escolhi caminhar a partir da sociedade civil e começo a minha jornada dentro da Anistia Internacional. Lá, em 2013, eu passo a compor a equipe de pesquisa política da organização, e a minha trajetória de atuação em direitos humanos foi fortemente construída a partir dessa primeira grande experiência.
Já trabalhei com várias agendas, tanto o direito à moradia adequada, recursos naturais, direito ao protesto, mas o que influenciou muito a minha trajetória profissional foi seguramente a agenda de segurança pública e sistema de Justiça Criminal. Eu atuava muito fortemente com a agenda de enfrentamento à violência policial, fazia acompanhamento das vítimas, dos familiares de vítimas de violência. Inclusive, esse é o grande ponto que me conecta com a trajetória da Marielle, porque é justamente por causa desse trabalho na agenda de segurança pública que começo a articular com a Comissão de Direitos Humanos da Alerj, que na época ela coordenava. E é ali que a gente cria minimamente um fluxo de poder – encaminhar, por meio da Anistia, esses familiares para que fossem acolhidos pela Assembleia Legislativa, para que essa comissão ajudasse a encaminhar as famílias ao atendimento psicossocial, para serem acompanhados nos encontros do Ministério Público, nas delegacias de polícia. Essa conexão surge a partir daí e, após o assassinato da Mari, a minha conexão com a família se dá ainda dentro da Anistia, por conta da campanha de justiça por Marielle e Anderson, que a Anistia Internacional construiu aquela época, logo após o assassinato. Foi muito importante o posicionamento da Anistia naquele momento, porque o instituto ainda não tinha sido fundado, as organizações ainda estavam entendendo como reagir ao que tinha acontecido e a Anistia Internacional se mobilizou e construiu uma estratégia que envolvia campanhas de sensibilização da sociedade para esse caso. A partir daí, conheço dona Marinete, seu Antônio, Luyara, Anielle, Mônica Benício. Essa conexão se dá durante o meu período de consolidação da carreira no campo de pesquisa em direitos humanos.
Agência Brasil: Como foram os encontros pessoais que você teve com a Marielle? Ela se tornou uma referência pela atuação política?
Lígia Batista: Sim. Tanto no nível profissional, quanto no nível pessoal, a Marielle tinha um lugar de inspiração para mim. Inclusive, em um momento muito delicado da minha vida em que sofri assédio no transporte público. Foi um momento bastante traumático. A Marielle, já eleita como vereadora, me acolheu, me recebeu, pensou comigo quais eram os encaminhamentos possíveis. Entendendo que o mandato dela demandava esse lugar da mobilização coletiva. Era um lugar de cuidado, de fazer política de afeto. Então, para mim, a Marielle tem uma importância não só do ponto de vista profissional, mas também do ponto de vista pessoal.
Ela sempre serviu muito de inspiração, até porque era uma pessoa muito presente no dia a dia das lutas, então todo mundo encontrava com ela em reuniões de movimentos sociais, em audiências públicas, em tudo que era lugar. A partir do momento em que ela atua na Comissão de Direitos Humanos, e depois disso quando assume como vereadora, a presença dela parecia ainda maior nos espaços. Era uma pessoa ativa, circulava muito pela cidade e pelo estado do Rio. E poder encontrá-la, abraçar, poder celebrar a vitória na eleição, sempre era motivo de muita alegria para mim e para outras pessoas. Ainda que seja muito triste ter de marcar essa meia década sem respostas, também é motivo de muito orgulho poder seguir dando continuidade ao trabalho no Instituto Marielle Franco neste momento. Mais ainda com essa possibilidade de suceder uma ministra. É uma grande responsabilidade, mas ainda assim é motivo de muito orgulho.
Agência Brasil: Como foi receber esse convite para liderar o instituto e defender o legado da Marielle?
Lígia Batista: Acho que a indicação vem por muitas razões. A primeira delas se relaciona com o fato de que eu tive a possibilidade de ter cruzado com Marielle em algum momento e de conhecer sua trajetória. Mas, acima de tudo, de ter uma relação de muita confiança com a família. Já que desde o começo, desde a minha atuação na Anistia Internacional, essa relação vinha se estabelecendo. Até depois, quando começo a construir parte da minha trajetória profissional dentro da filantropia internacional. É onde eu mobilizava redes que atuavam pelo enfrentamento ao racismo na América Latina. Eu continuava como grande apoiadora do instituto e acompanhei desde a criação, desde o início desse processo. Então, o fato de eu ter a experiência na sociedade civil, de ter uma relação boa com a família, com os parceiros do Instituto Marielle Franco, foi importante.
E o convite veio nesse momento dos grandes desafios de transição, em que temos que não só responder as demandas do 14 de Março, do caso e das demais coisas que a gente faz por aqui, mas também estruturar essa organização. Porque queremos que o instituto sobreviva para sempre, independentemente da nossa existência aqui. Então, venho também para agregar nesse sentido, de ajudar a dar cada vez mais musculatura para o instituto Marielle Franco hoje e para o que ele se propõe a ser no futuro.
Agência Brasil: O instituto surge de uma iniciativa da família da vereadora, para defender a memória dela. Você assumir como diretora no lugar da Anielle representa uma mudança também no sentido de ampliar os projetos e as ações além da história da família? Focar mais em políticas de combate ao racismo, ao feminicídio e em políticas de inclusão para mulheres negras?
Lígia Batista: Sim, venho para dar continuidade, porque ainda que eu não seja da família, sou uma pessoa que conhece o caso, que tem uma relação boa com eles e com as organizações parceiras. E tenho a intenção de dar seguimento a projetos importantes que temos construído internamente. Um deles, por exemplo, é a Agenda Marielle Franco, que serve como essa grande carta de princípios, como ferramenta política que busca garantir compromissos de parlamentares progressistas no Brasil com as pautas e práticas que Marielle tinha quando estava no exercício do mandato.
A gente é muito procurado, dentro dessa agenda de homenagens, para ajudar a orientar no sentido de como construir peças, livros, enfim, uma dezena de coisas que se referem ao resgate da memória de Marielle para a sociedade brasileira. Temos um sonho, no futuro, de criar um centro de memória e ancestralidade da Marielle Franco, que conte com acervo da história dela. Já estamos em processo de catalogação. Nós temos aí vários caminhos abertos para explorar, mas costumamos escrever o nosso trabalho em quatro grandes linhas. Primeiro, o eixo de Justiça pelo caso. Segundo, manter viva a memória de Marielle. Terceiro, a multiplicação do legado. E, por fim, ser capaz de regar essas sementes, tanto no sentido de seguir inspirando outras mulheres a entrarem na política, mas também de mobilizar novas gerações para estarem junto, ativistas que estejam comprometidos com as nossas causas. A rede de sementes é uma iniciativa que a gente tem tentado consolidar ao longo dos últimos anos, que é basicamente uma rede de mobilização de pessoas ao redor do Brasil inteiro em prol das ações que o Instituto tem desenvolvido. Então, esses têm sido os principais caminhos de atuação no momento.
Agência Brasil: Quais as perspectivas de interlocução entre o instituto, a sociedade e o poder público neste momento de transição política, levando em conta o reforço da Anielle no Ministério da Igualdade Racial e a perda de protagonismo dos grupos políticos que alimentavam discursos de ódio e eram contrários às pautas que o instituto defende.
Lígia Batista: Esse novo momento político é de retomada de um projeto democrático. Estávamos vendo, a passos largos, o avanço do bolsonarismo no Brasil, que não deixou de existir. A gente percebe que o conservadorismo e a extrema-direita continuam crescendo. É fundamental, no contexto de retomada de um projeto democrático de poder, que a sociedade civil esteja forte e engajada na promoção de uma agenda de direitos. É importante, neste momento do 14 de Março, que sejamos capazes de reconhecer a importância da resposta sobre esses assassinatos, porque acredito que dar uma resposta dialoga com o que é a democracia brasileira. A gente está num país que é extremamente violento, que historicamente sempre matou muitos defensores de direitos humanos nas mais diversas posições.
A ausência de respostas sobre o assassinato de Marielle e Anderson só alimenta a continuidade desse ciclo. E gera um clima de medo e de insegurança para que outras mulheres negras possam ocupar espaços de poder e tomadas de decisão. Então, é fundamental que o Estado brasileiro seja capaz de resolver esse crime. Que a gente não permita que quem mandou matar siga impune e que possa continuar perpeturando essas mesmas violências contra outras companheiras e ativistas, contra outras mulheres negras e trans comprometidas com a agenda de direitos humanos. Parece fundamental que reconheçamos este momento como de vitória da retomada democrática, mas também de continuarmos muito alertas, porque o conservadorismo e a extrema-direita seguem em crescimento.