Mãe, avó, artista e “sapatão” são algumas das palavras que descrevem marcos da trajetória da grafiteira NeneSurreal. O percurso mistura a carreira artística ao longo de mais de 30 anos a uma história de vida cheia de descobertas e obstáculos. “Eu gostaria de falar só da minha arte. Mas, a minha arte é a minha luta. Elas estão muito interligadas”, diz, cercada de pinturas e esculturas que produziu em sua casa em Diadema, na Grande São Paulo.
As primeiras experiências com o graffiti foram ainda no fim da adolescência. “Hoje, a gente está em um momento muito bom em que as mulheres estão conseguindo realmente pintar. Mas, eu venho de uma geração em que precisava provar que tinha capacidade para fazer. Então, eu ia dar fundo em muro [pintura preparatória]. Ia olhar, para ver se não tinha polícia. Menos pintar de fato. E mesmo quando eu estava pintando de fato, ele [o trabalho] era direcionado [pelos grafiteiros homens]”, conta sobre como era a cena da arte de rua à época em que começou.
Esculpir em aço
Nene estava crescendo na cena do graffiti quando teve sua filha Janine. “O pai da minha filha fazia parte do movimento, não do movimento de cultura hip hop, mas do movimento de gangues. Ele foi assassinado aqui. Minha filha tinha 3 anos”. Nessa época, a artista tinha 19 anos e precisou procurar um emprego estável que garantisse o próprio sustento e a criação da menina, que, hoje, tem 38 anos e é mãe dos três netos da grafiteira – Helena, Fernanda e Henrique.
Começou trabalhando na copa de um grande hospital da capital paulista e chegou a se tornar instrumentadora cirúrgica, uma profissão que permitiu estabilidade financeira e também trouxe elementos para sua produção artística. Foram mais de 20 anos trabalhando na área da saúde. Nesse período, o trabalho artístico se entrelaçou com o mundo das próteses em aço cirúrgico.
O próprio hospital, ao perceber o talento de Nene, passou a repassar alguns desses materiais para compor esculturas. “Eles doaram muito. Eu fiz muita coisa”, enfatiza a artista sobre o material difícil de ser trabalhado por ser extremamente resistente a técnicas convencionais. “Eu não consigo soldar, porque é aço cirúrgico. Então, elas [as esculturas] são todas parafusadas”, explica a respeito das obras montadas em bases de cimento.
A grafiteira Nenesurreal fala sobre sua trajetória na casa ateliê em Diadema – Rovena Rosa/Agência Brasil
O processo de voltar a produzir arte e mesmo de se reconhecer como artista não foi fácil. “As mulheres, depois que são mães, acabou. É quase o fim de qualquer sonho. Mesmo com tudo impedindo esse sonho, eu fiquei com esse bichinho e acreditei. Consegui voltar. Porque não é só querer. Foram várias coisas que aconteceram, várias mulheres pretas que estiveram ali, me fortalecendo, para eu voltar”, diz sobre como foi, aos poucos, deixando a profissão estável para voltar a ter a carreira artística como foco principal da vida.
Reconhecer-se artista
Entre os caminhos e desvios, Nene resolveu cursar artes visuais. “Achando que a faculdade me daria um certificado para legitimar que eu era artista. Falar e sentir que sou artista vem agora, há poucos anos. Não que eu não me sentia artista, mas parecia muito audacioso, muito prepotente [me definir como artista]”, comenta. No entanto, acabou aproveitando pouco do que estudou em sala de aula. “A academia para mim acabou sendo no boteco. Porque no boteco era o rolê. No boteco eu fiz cenografia, eu troquei ideia como manusear um material que eu não sabia mexer. Eu tive ideias de projetos. A academia é a rua para mim”.
Encarar a rua é, para a artista, a própria essência do graffiti. “Pegar o meu corpo, ir para a parede. A posição que eu fico na parede, não tem salva [guarda], eu fico de costas para a rua. É preciso ter atitude para isso. É preciso ter coragem para isso”, diz sobre pontos que considera centrais nessa forma de expressão.
Questões que, segundo ela, ganham ainda mais peso em corpos como o seu. “A rua não é um lugar para nós mulheres pretas, para nós população preta, principalmente se você tiver de frente para o muro fazendo coisas que o sistema não entende”, diz ao diferenciar essa prática com outros trabalhos que desenvolve. “Pintar em ateliê é outro tempo. Não precisa ficar preocupada com as costas”, compara.
Lutas
Apesar de destacar os riscos oferecidos pela expressão ao ar livre, Nene conta que também teve que travar lutas dentro do movimento hip hop. “Esse movimento também é machista. É racista, por mais que seja um movimento preto. Porque você vê que quem movimenta esse movimento são os brancos”, afirma
Não foi só no campo das artes que ela precisou lidar com preconceitos. Hoje, com 56 anos de idade, revela que a relação com a própria família se tornou tempestuosa ao assumir nova orientação sexual. “Eu me assumi sapatão [lésbica] com 50 anos. E até hoje é megaviolento. Eu fui violentada muitas vezes com essa palavra. E quando eu me apresento, eu me apresento com essa palavra. Não é para as pessoas me chamarem. É uma afirmação do meu corpo. Eu venho há muitos anos tirando máscaras”.
Além da experiência pessoal, a artista transformou a própria casa em espaço de acolhimento para pessoas LBGTQIA+. “Uma menina vem para São Paulo, precisa de um lugar para ficar porque vai fazer um trabalho. Ela pode ficar aqui”, explica. Da família, mantém a lembrança carinhosa da avó, como pessoa que a iniciou no contato com as artes e com o artesanato. “O artesanato vem por conta da minha vó, que era do macramê, do crochê”, conta ao apresentar as diversas linguagens que fazem parte do seu repertório.
Sonhar alto
Enquanto isso, da laje da casa, Nene continua sonhando com novos projetos. Foi a partir dali, observando o bairro, que ela elaborou a série que chama de Cabeçudas. “A gente estava no mês de julho, época de pipa. Eu olhei para os moleques pretinhos, você nem enxergava eles, nada, só a silhueta. Todos com a cabeça olhando para o céu. Eu fiquei enlouquecida com essa cena”, lembra.
Foram esses personagens com a cabeça ovalada, inspirada na silhueta dos jovens que olham para o alto, que Nene escolheu para o mural em grandes dimensões que pintou no teto do teatro da Fábrica de Cultura do Jardim São Luís, zona sul paulistana. O projeto exigiu muito da artista e da equipe de mulheres que pintou durante uma semana, pendurada em cordas de rappel na empena em formato de rampa. “Foi um trabalho com muita dificuldade, por causa da questão do corpo, do sol, do vento. Porque você está solto lá em cima”, conta.
As sete personagens no teto do teatro têm ainda os cabelos em fios finos e encaracolados que Nene considera como uma de suas assinaturas, assim como os “olhos tristes” de outras figuras que pinta pelas ruas.
O projeto, contemplado por um edital que permitiu o mural na empena, inclui um documentário, lançado no último mês de março, que celebra a trajetória de Nene como uma das pioneiras do graffiti. Entre os reconhecimentos que acumula na carreira está a passagem pelo Festival Queer Wien Woch em Viena, na Aústria; o Prêmio Sabotage, em 2016; e a homenagem concedida pela organização não governamental Ação Educativa, em 2018. Em 2021, um de seus trabalhos passou a fazer parte do acervo permanente da Pinacoteca Municipal de Mauá, na Grande São Paulo.