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Artista lírica trans que cantava escondida diz que “a voz me moldou”


Quando começou a estudar canto, Vivian Fróes Ferrão tinha 13 anos e o gênero masculino ainda em seu nome e documentos. Como todo “menino” com voz muito aguda, porém, o tom que lhe parecia mais natural era recebido ao redor com estranhamento e preconceito. Só em seu quarto, escondida, ela cantava as músicas que mais gostava, e, nas aulas, o repertório era cuidadosamente escolhido para não revelar seu verdadeiro tom.

“Com o tempo, eu tive coragem, e um dia levei uma música mais aguda que eu costumava cantar do jeito que eu gostava. O professor me incentivou muito, e isso me surpreendeu. E aí eu comecei a treinar na aula e a me aprofundar no canto”, disse Vivian, que hoje tem 31 anos, é cantora lírica e preparadora vocal. Ela concedeu entrevista à Agência Brasil na Semana da Visibilidade Trans.

“Por uma grande parte da minha vida, eu cantei com voz feminina sem me identificar enquanto mulher trans, porque eu nem sabia o que era transexualidade. Eu me identificava com os contratenores, uma classificação vocal para homens com voz muito aguda”, explicou.

Descobrir que podia ser um contratenor fez com que a Vivian da época sentisse que tinha um lugar na música, mas permanecia o desconforto de ainda não reconhecer sua verdadeira identidade de gênero e o preconceito por ser considerada “feminina demais” em diversos outros espaços que frequentava.  

Canto erudito

“Um episódio que me marcou muito foi quando procurei um professor de canto para fazer aula de canto erudito, e ele morava muito longe. Depois de horas de viagem de ônibus, cheguei na casa dele, e, quando eu comecei a cantar, ele falou para baixar uma oitava [mudar para um tom mais grave]”, recordou ela, que foi recriminada ao responder que aquele era o tom em que cantava.

“Ele disse que eu não podia cantar naquela oitava porque eu era homem. Disse que não existia contratenor e perguntou se eu era castrati, se eu tinha feito castração”, revelou.

Na história da música lírica na Europa, os castrati eram cantores que tiveram seus órgãos genitais mutilados antes de passarem pela puberdade, para evitar que o amadurecimento do corpo provocado pelos hormônios masculinos afetasse a voz aguda que tinham na infância. 

“Ele não quis me ouvir cantando e me mandou embora. E eu voltei de lá chorando muito. Essa foi só uma das situações que eu passei. Isso tudo me deixava muito mal, e eu voltei a cantar escondida”, recordou.

Veja uma apresentação de Vivian:

 

Regência de corais

Mesmo assim, Vivian cursou Música na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Na graduação, procurou professores que aceitassem sua forma de cantar, e foi, então, que passou a caminhar para a música lírica profissional e para a regência de corais, sua especialidade. 

“Essa voz moldou muito do que eu sou”, afirmou ela, que se reconheceu uma pessoa trans com 18 anos, durante a faculdade. “A voz é um elemento extremamente importante na vivência e na identidade das pessoas trans. A voz tem um peso muito grande na questão de gênero das pessoas trans e em como se dá a formação dessa identidade. Não só externamente, mas internamente também”, acrescentou.

Vivian contou que se assumir como uma mulher trans fez com que sua voz tivesse uma outra leitura por parte da sociedade, que passou a considerá-la condizente com seu gênero.

“Não que essa voz me determinasse enquanto gênero, mas casava com a ideia de feminilidade que era lida pelo meu lado externo, pela sociedade, que não mais se chocava em me ver cantando. Porém, isso não me impediu de viver uma série de preconceitos”, ponderou.

“Como quando minha voz estava adequada e, mesmo assim, tentavam dizer que minha voz era diferente, quando, na verdade, diferentes são as pessoas. A voz de uma mulher nunca vai ser igual a voz de outra mulher”, salientou.

Ela mencionou que é comum ver reações positivas de pessoas que não sabem que ela é uma mulher transexual, e perceber que essas opiniões mudam quando isso é revelado.

“Sempre ouvi que minha voz era falsa, que minha voz era falsete. Me colocavam ao lado de uma mulher cis que cantava igual a mim, e diziam que eu cantava em falsete, e ela, não. Isso é uma forma de discriminação da voz trans. E não deixa de ser uma forma de dizer: sua voz é falsa, é de plástico, que é como a gente, mulher trans, é vista a vida inteira, como uma mulher falsificada, de plástico”, enfatizou.

A voz trans

O preconceito não impediu que Vivian continuasse sua carreira como cantora, pianista, regente e preparadora vocal. Além das aulas de canto, ela também prepara os alunos para falar em público e conta que ser reconhecida como uma transexual atuante no ramo muitas vezes é o que atrai seus alunos, que admiram sua capacidade de preparar a própria voz. 

“Por verem essas questões que eu trago, como pessoa trans e cantora lírica, as pessoas pensam que eu devo entender tudo de preparação vocal”, afirmou.

“Fico muito honrada de poder ser uma representatividade positiva nesse sentido, de superação e conquista. O que eu gostaria que passasse das minhas vitórias enquanto mulher trans e cantora trans é que existe muita luta, mas que é possível a gente superar. E eu olho esse lugar que hoje eu ocupo e me surpreendo”, revela.

Como trans e cantora, ela argumenta que a voz é também um instrumento de afirmação da identidade e a forma de expressão mais orgânica que pode existir musicalmente. Sua luta, enfatizou, é para que vozes diferentes possam se expressar com liberdade, para além daquelas que se esperam para homens e mulheres. 

“A voz trans que não corresponde a uma estética cisnormativa, é uma voz como a da Pabllo Vittar. E eu amo a voz dela. E eu posso falar de técnica vocal, porque eu sou professora de canto. Posso afirmar com todas as letras que a Pabllo canta muito. Ela sabe cantar, e muito bem. Ela sabe muito de técnica vocal”, disse Vivian. “Por que tantas pessoas desconectadas ao movimento LGBT dizem que não gostam? A voz da Pabllo é uma voz que diverge da heteronormatividade. Ela é uma voz que não é nem masculina, nem cisgênero feminina, nem cisnormativa, como a minha. E nisso eu luto também”, disse.

A cantora espera que sua carreira na música e o ativismo no movimento trans inspirem outras pessoas a buscarem suas verdades, independentemente do preconceito.

“Não acredite nesses insultos, nessas discriminações e coisas horríveis que falam para vocês. Não acredite, porque isso é fake [falso]. Esse é o mundo fake que querem pintar pra gente, mas a gente chegou aqui com a nossa verdade para mostrar o que é o mundo de verdade, e também o mundo deles, e como eles podem ser felizes de verdade”, afirmou. “Nunca se sinta como se você não fizesse sentido. Nunca sinta como se faltasse algo em você. O que falta é no mundo”. 

* Matéria alterada às 11h59 para correção do sobrenome da cantora lírica.

 



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