O Projeto de Lei do Plano Diretor Estratégico (PDE) da cidade de São Paulo segue para votação final na Câmara Municipal na próxima sexta-feira (23). A previsão era de que a sessão ocorresse na quarta-feira (21). A alteração foi anunciada na segunda-feira (19) em coletiva de imprensa do presidente da Câmara dos Vereadores de São Paulo, Milton Leite (União).
A Agência Brasil ouviu urbanistas, acadêmicos e representantes de movimentos sociais sobre as propostas em discussão. Habitação de interesse social, eixos do transporte público, verticalização, compensação de construtoras estão entre os pontos mais críticos. Eles avaliam que houve uma priorização das propostas dos setores empresariais em vez das demandas da sociedade civil.
O Plano Diretor é um instrumento da política urbana, que deve ser elaborado com a participação da sociedade e que funciona como um pacto social. A lei organiza os espaços da cidade, a forma como ela vai se desenvolver e como será garantida qualidade de vida para toda a população. De acordo com o Estatuto das Cidades, a revisão da lei deve ser feita pelo menos a cada dez anos.
Cidade para quem?
Um dos pontos críticos destacados pela coordenadora de Urbanismo do Instituto Pólis, Margareth Uemura, é que o conteúdo da proposta não enfrenta o déficit habitacional da metrópole. Ela explica que, diferentemente do PDE de 2014, a revisão não prevê adensamento populacional nos eixos de transporte.
“O adensamento populacional é ter mais pessoas próximas aos eixos de transportes urbanos. Essas unidades que estariam sendo produzidas nesses eixos de transporte deveriam atender ao menos uma parte desse déficit habitacional, ou seja, o PDE estava viabilizando uma diretriz para atendimento a essa população [de baixa renda]”.
Coordenadora de Urbanismo do Instituto Pólis Margareth Uemara Foto: Divulgação
No PDE de 2014, ficou estabelecido, entre outras diretrizes, “promover o adensamento construtivo e populacional e a concentração de usos e atividades em áreas com transporte coletivo de média e alta capacidade instalado e planejado”.
Margareth destaca, no entanto, que a diretriz não foi seguida. Segundo ela, desde 2014, alterações na lei permitiram, por exemplo, a construção de mais vagas de garagem nesses imóveis. “Com isso, o público com renda acima [a que era destinada os imóveis] se interessou. Inicialmente, uma das principais diretrizes do PDE era, além de ter um zoneamento especial de habitação de interesse social em algumas áreas, ter também a produção de habitação nesses eixos de transporte que possibilitasse que a população de menor renda morasse perto do transporte urbano, ou seja, gastasse menos tempo no seu deslocamento”.
Habitação de Interesse Social (HIS) é aquela destinada ao atendimento habitacional das famílias de baixa renda, podendo ser de promoção pública ou privada.
Na avaliação da co-fundadora do Instituto Perifa Sustentável, Gabriela Santos, a revisão do PDE incentiva ainda o uso de automóveis. “A proposta do prefeito [de São Paulo] Ricardo Nunes sugere o aumento das vagas de garagem em prédios, estimulando a cultura do automóvel, que vai no caminho oposto das cidades sustentáveis do mundo”, alerta a cientista social, ativista climática e mobilizadora em participação social periférica.
O Perifa Sustentável é um grupo de jovens engajados na agenda climática e para o desenvolvimento sustentável e justo para o Brasil.
“Esse PL [projeto de lei] aumenta o limite de adensamento da cidade, além de ampliar os raios de demolição e descaracterização dos miolos de quadra, não garante que a população de baixa renda seja atendida pelas unidades que serão construídas, bem como sobrecarregará a infraestrutura urbana [redes de abastecimento de água, esgoto e drenagem] e ampliará o tráfego nas vias da cidade”, complementa a professora Viviane Rubio, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Se aprovada, permitirá a construção de edifícios ainda mais altos no interior dos bairros.
Déficit habitacional
O urbanista Fernando Túlio, pesquisador da ETH Zurique (Suíça), aponta que há diferença entre o mercado popular de habitação e unidades de interesse social. “O PL 127/2023 estimula a construção de edifícios maiores, mas sem necessariamente garantir que eles sejam destinados para quem mais precisa, ou seja, a população que recebe até três salários mínimos, e que é a maior parte da demanda. Esses edifícios, na realidade, são para o mercado popular, e não para a Habitação de Interesse Social. Quem tem pouca ou nenhuma renda, não vai conseguir ter acesso a essas unidades”, explica o urbanista, que também é conselheiro do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) São Paulo, doutorando na FAU-USP e diretor do Instituto Zerocem.
Movimentos e sociedade civil alertam sobre a modificação. “O Instituto Polis e outras entidades e movimentos de moradias destacaram que essa é uma correção a ser feita. Tanto o PL da prefeitura quanto o substitutivo agravam isso, amplia essa área [em que podem ser construídos prédios altos] sem destiná-la a essa população de baixa renda que deveria ter oportunidade de morar em áreas mais bem localizadas. Há um desvio [na revisão] do que é uma das diretrizes principais [do PDE]”, lamenta.
Para Gabriela Santos, integrante do Instituto Perifa Sustentável, o PL mantém o racismo ambiental. “Ao privilegiar a especulação imobiliária, e não a participação popular, o prefeito coloca São Paulo à venda e não garante que as moradias dos bairros mais fartos de infraestrutura possam ser povoados por populações que há anos vem sendo empurradas para cada vez mais longe, simplesmente pelo fato de que não existem mecanismos para garantir o acesso dessa parcela da população ao mercado formal. Perpetua-se, assim, as desigualdades e o racismo ambiental, pois a maioria que vive em encostas de morro, beira de represas e rio é a população preta”.
A Secretaria Municipal de Habitação informou que, de acordo com o Plano Municipal de Habitação (PMH), o déficit habitacional na capital paulista é estimado em 369 mil domicílios. Esse déficit é entendido como o número de moradias, sejam elas novas, reabilitadas ou que necessitam ser viabilizadas para o enfrentamento das condições de precariedade habitacional.
Gabriela Santos, do Instituto Perifa Sustentável – Foto: Divulgação
Mobilidade
Nos extremos da cidade, o deslocamento de casa para o trabalho consome mais de 1 hora, enquanto nos bairros do centro expandido, essas viagens podem ter duração inferior a 30 minutos, aponta o Mapa da Desigualdade 2022, da Rede Nossa São Paulo.
Mobilidade e moradia estão vinculadas, observa a coordenadora do Instituto Polis. “Quando o PDE de 2014 deu como diretriz aproximar o morador dos meios de transporte, era justamente para melhorar a mobilidade urbana e diminuir a quantidade de carros circulando pela cidade, já que quem mora perto de transporte, como o metrô, não utiliza o carro para o deslocamento principal. Com essa verticalização excessiva, piora o trânsito, porque se o morador que está nesse imóvel não utiliza o transporte coletivo, e sim o carro, ele sobrecarrega o sistema viário e promove o trânsito onde não é necessário”.
A opinião é compartilhada pela arquiteta e urbanista Paula Santoro. “Prejudica a cidade como um todo. A produção de moradia para as faixas mais altas tira o espaço de moradia das classes médias e baixas que vão morar mais longe, o que piora a nossa situação de mobilidade. Sem falar no fato de que a gente segue fazendo urbanismo para os carros, em uma cidade onde a gente tem um drama, uma mobilidade imóvel. A gente quase não consegue se mover nessa cidade”, disse.
Paula é pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP) e da Faculdade Unida de São Paulo (Fausp) e coordenadora do LabCidade FAUUSP .
O conselheiro do IAB Fernando Túlio recorda que o PDE original não ampliou os corredores de ônibus na maior capital do país. “O Plano Diretor de 2014 previa a construção de 150 km de corredores de ônibus até 2016, mas menos de 5% deles foram construídos até hoje. Isso impacta fortemente o dia a dia da população. São horas a mais no trânsito, mais poluição e mais acidentes”.
A verticalização é outra questão que preocupa os especialistas. “A impressão que tenho é que a cidade será transformada em um paliteiro fantasma, pois os edifícios estão cada vez mais altos e as unidades cada vez menores”, disse a professora Viviane Rubio, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM).
“Essa distorção deveria ser ajustada com a revisão, mas até aqui não se vê diretrizes para isso, ao contrário, quando o substitutivo é apresentado e aprovado, ampliando o adensamento para os miolos de quadras dos bairros, a tendência é a expulsão das famílias com menor poder aquisitivo para áreas mais distantes”, critica.
Conselheiro do IAB Fernando Tulio Salva Rocha – Foto: Rafaella Arcuschin/Divulgação
Zonas de concessão
Na segunda-feira (19), o relator do texto, vereador Rodrigo Goulart (PSD), disse que seriam retiradas do projeto as “zonas de concessão”, territórios públicos que foram cedidos à iniciativa privada, como rodoviárias, e que, na versão aprovada na primeira votação, poderiam ter regras específicas para construções, diferentes da vizinhança.
As chamadas “zonas de concessões” são áreas que poderão abrigar atividades que, “por suas características únicas, foram cessionadas ou estão com projetos para esse fim, e necessitem disciplina especial de uso e ocupação do solo”.
“Quando se cria uma zona de concessão, o Poder Público abre mão de controlar o uso e a ocupação daquele espaço, o que é o contrário do que a Constituição determina, que municípios devem regrar sobre o uso e aplicação do solo. Espero que [as zonas de concessão] não sejam nem permitidas”, alerta a coordenadora do Instituto Pólis, Margareth Uemura.
Para Paula Santoro, coordenadora do LabCidade, a concessão pode deixar áreas urbanas inacessíveis para a população. “E destrói a memória e a possibilidade de outras formas de vida e de morar, como, por exemplo, os territórios negros em áreas bem servidas de infraestrutura, ameaçados pela verticalização, e que exige uma substituição tanto de tipologia habitacional, como de população”.
Paula lembra ainda de outras questões esquecidas na revisão do PDE. “Não fala de questões ambientais. Não se propõe a enfrentar as mudanças climáticas, que é uma agenda mundial, e ainda promove a verticalização em lugares, por exemplo, que alagam e não têm a mínima infraestrutura ambiental para suportar esse adensamento”.
Na avaliação da professora Viviane Rubio, o substitutivo não contempla os objetivos de um Plano Diretor. “A Câmara Municipal tirou da ‘manga do colete’ um projeto de lei substitutivo, onde estão alteradas não só aqueles artigos já definidos após o debate público, mas algumas alterações que ferem os objetivos e diretrizes do PDE de 2014 que não estão em revisão, como se elaborassem outro plano”.
Outorga onerosa
A revisão do PDE cria ainda uma nova forma de pagamento da outorga onerosa, uma taxa paga pelas empreiteiras para construir acima do limite básico. A nova proposta é substituir o pagamento em dinheiro por obras de mobilidade, drenagem e habitação. Atualmente, os valores da outorga onerosa vão para o Fundo de Desenvolvimento Urbano de São Paulo (Fundurb), usado para investimentos da prefeitura em obras. Na opinião da Margareth Uemura, a fiscalização das obras realizadas ficará pendente.
“Quando o recurso vai para o fundo, existe uma certa garantia de que o recurso está sendo discutido e destinado. Quando não se passa mais pelo Fundurb, começa a ter um espaço que é nebuloso, que não é mais transparente e democrático. E, se essa obra é feita no mesmo local onde o empreendimento é realizado, se sobrevaloriza o empreendimento que já ganhou valor”, alerta.
O relator do projeto disse, na segunda-feira, que parte do texto já aprovado no âmbito do Fundo de Desenvolvimento Urbano (Fundurb) também será alterado.
Outro lado
Movimentos sociais por moradia participam da votação do Plano Diretor Estratégico na Câmara Municipal – Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
Em nota enviada à Agência Brasil, a Câmara de Vereadores de São Paulo informou que, desde a chegada do projeto de lei da prefeitura, deu ampla transparência ao processo de revisão.
“Foi criado um site exclusivo [saopaulo.sp.leg.br/revisaopde] e feitas mais de 50 audiências públicas para ouvir a população. O texto substitutivo, quando foi apresentado, também foi lido em plenário, publicado e está sendo debatido em outra série de audiências. Portanto, não há como negar que a Câmara está sendo extremamente transparente. Fato que corroborou com a decisão da Justiça de não paralisar o andamento dos trabalhos”, diz a nota.
No fim de maio, uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público pediu estudos técnicos sobre a revisão do Plano Diretor de São Paulo e a suspensão temporária da tramitação da revisão do PDE. Os promotores sugeriram mais debate sobre as mudanças e que a Câmara Municipal suspendesse o trâmite do Projeto de Lei 127/2023 e de seu substitutivo. No entanto, a juíza Maricy Maraldi, da 10ª Vara da Fazenda Pública, indeferiu o pedido no dia 5 de junho. A juíza considera que o trâmite do projeto segue a lei.
Quanto às críticas de urbanistas e entidades civis de que o texto atende aos interesses das corporações imobiliárias, a Câmara disse que ouviu vários setores. “A Câmara e a Comissão de Política Urbana entendem que o setor imobiliário é parte da sociedade e, portanto, também pode ser ouvido no processo de revisão. Inúmeras colaborações ao texto substitutivo vieram das audiências públicas e da sociedade, como a expansão do Parque Burle Marx, demanda popular de cerca de dez anos”.
Além disso, diz a nota, “novidades como o Plano Municipal de Praças, a criação de dois Territórios de Interesse Cultural e da Paisagem, para preservação do bairro do Bexiga e também das nossas represas, e os incentivos para a Habitação de Interesse Social para famílias de baixa renda demonstram as muitas vozes que foram ouvidas durante o processo”.
Já a Prefeitura de São Paulo informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que não comentará o tema, uma vez que a discussão, no momento, está no âmbito do Legislativo.