“Eles só pegam aquilo que historicamente o Brasil criou das nossas imagens e produzem fake news contra a gente”. A percepção foi um dos relatos registrados por uma pesquisa que ouviu pessoas LGBTQIA+ negras do Rio de Janeiro sobre o ecossistema de informação em que estavam inseridas, nas redes e fora delas, antes e depois da disputa eleitoral de 2022. O resultado aponta uma frequência elevada de agressão por discurso de ódio, especialmente na internet, canal considerado a principal fonte de informação por 74% dos entrevistados.
O estudo foi realizado pelo Data_Labe, um laboratório de dados do Complexo da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro. Em entrevista à Agência Brasil, o antropólogo e coordenador do trabalho, Flávio Rocha, explica que a exposição ao discurso de ódio afeta a saúde mental, causa medo e faz com que essas pessoas temam inclusive exercer sua cidadania.
“Uma das narrativas mais emblemáticas era de uma pessoa que, durante o período eleitoral, disse que tinha medo de ir votar”, conta. ” Muita gente precisa recorrer a terapia, se desligar das redes sociais e acaba tendo medo de sair na rua. A gente recebeu muitos relatos sobre esse medo, sobre esse impacto na saúde mental e no emocional. Isso foi bem relevante na nossa percepção”, diz o coordenador.
A equipe responsável pelo estudo contou com quatro pesquisadores e pesquisadoras negros e LGBTQIA+, o que Rocha considera que permitiu maior empatia e sensibilidade ao abordar os temas e elaborar as perguntas. Além do antropólogo, participaram a psicanalista clínica Roberta Ribeiro, a graduanda em Conservação e Restauração Joyce Reis e o doutorando em Saúde Coletiva e especialista em Gênero e Sexualidade Leonardo Peçanha.
Os pesquisadores aplicaram questionários e realizaram grupos focais e entrevistas individuais com pessoas do público-alvo e chegaram a um total de 175 participantes. Os dados estatísticos, portanto, não podem ser extrapolados para toda a população LGBTQIA+ negra, mas as respostas e relatos colhidos na pesquisa qualitativa indicam como os entrevistados percebem e se apropriam das informações disponíveis em seus círculos.
A maioria dos entrevistados é mulher, cisgênera e das zona norte e oeste do Rio. Quase metade (45%) dos respondentes afirmou receber até R$1.212,00 por mês e 81% disse já ter entrado em contato com discurso de ódio. Para uma em cada quatro pessoas, as violências racial ou de gênero ocorrem de forma recorrente.
Confira a entrevista com o pesquisador:
Agência Brasil: Em termos quantitativos, os dados não podem ser extrapolados para toda a população negra LGBTQIA+. Mas, em termos qualitativos, quais sinais apontados pela pesquisa você destacaria?
Flávio Rocha: Um primeiro ponto que eu destacaria é uma das narrativas mais emblemáticas, que era de uma pessoa que, durante o período eleitoral, disse que tinha medo de ir votar. Tinha medo por ser uma pessoa trans, uma pessoa LGBTQIAP+ e por ser uma pessoa negra. Esse é um primeiro aspecto, o medo de ir votar pelo discurso de ódio produzido a respeito de vários grupos. Em um segundo ponto, eu entraria na falta de representatividade. Tanto nos meios de comunicação, quanto na política. Nessa última eleição, a gente teve um crescimento de candidaturas trans e LGBTQIAP+ e, na mesma medida, a gente percebeu um aumento do discurso de ódio contra essas candidaturas. Em um dos grupos focais, há uma fala sobre como foi produzida a desinformação sobre essas candidaturas. Diziam que “essa galera não pode ser eleita, porque não sabe gerir dinheiro público”. A gente entrevistou também candidatos dessa eleição, e a maioria trouxe algum relato sobre discurso de ódio no decorrer dessa campanha ou no decorrer dos mandatos, quando já tinham mandatos.
Agência Brasil: Por que você acredita que desinformação, fake news e discurso de ódio estão sempre de mãos dadas nos relatos dessa população?
Flávio Rocha: Eu acredito que esses três elementos aparecem como estratégias políticas, sobretudo de candidaturas de extrema direita. Parece que é a estratégia que foi impulsionada, principalmente num contexto em que a gente tem as redes sociais como ferramentas do jogo político. Foi a forma como as candidaturas de extrema direita souberam desarticular as candidaturas ditas progressistas ou de esquerda. Sempre trazendo um discurso sobre aborto, criminalizando movimentos sociais e criando uma narrativa de que esses grupos são contra as igrejas, algo que o neopentecostalismo abomina. A desinformação sobre o uso de kit gay nas escolas foi um discurso muito forte na campanha de 2018, por exemplo. Esses elementos são uma estratégia política.
Agência Brasil: Nos relatos da pesquisa, a violência nas plataformas digitais é mais recorrente que a “violência offline”?
Flávio Rocha: Sim, porque cada vez mais a gente está mais conectado. A todo momento, existe a exigência de a gente está online. A pessoa offline está em contato com os lugares em que circula. Mas online, o discurso de alguém que está no Amapá chega na pessoa no Rio de Janeiro em segundos. O Twitter é a rede mais nociva nos relatos da nossa pesquisa, por ser um lugar em que as pessoas publicam as opiniões. Apesar de o Instagram ser a mais utilizada pelos nossos pesquisados, ele não chega a ser tão nocivo, por ser uma plataforma imagética em que o discurso é produzido de uma outra forma.
Agência Brasil: Um número grande de pessoas relatou ser vítima do discurso de ódio de forma recorrente. O que a parte qualitativa da pesquisa contou para vocês sobre o impacto dessa violência constante?
Flávio Rocha: A gente percebeu que há um impacto muito grande na saúde mental dessas pessoas. Muita gente precisa recorrer a terapia, se desligar das redes sociais e acaba tendo medo de sair na rua. A gente recebeu muitos relatos sobre esse medo, sobre esse impacto na saúde mental e no emocional. Isso foi bem relevante na nossa percepção.
Agência Brasil: A pesquisa indicou que, de certa forma, as limitações de pacotes de dado de celular aumentaram a exposição dessas pessoas ao discurso de ódio. Pode explicar esse mecanismo?
Flávio Rocha: Se uma pessoa pode usar só WhatsApp e Facebook e não consegue buscar uma informação no Google porque está sem dados, ou se chega uma informação e a pessoa não consegue pesquisar e acessar plataformas em que consiga verificar essa fato, ela vai ficar só com aquela informação. No nosso grupo pesquisado, o meio mais confiável não são suas redes de contato nas plataformas, mas as organizações da sociedade civil e mídias alternativas. Mas se a pessoa fica refém dessas plataformas, se está limitada pelo pacote de dados, ela vai ter dificuldade em buscar novas informações ou diferentes formas de informação.
Agência Brasil: E o que a pessoa tem disponível gratuitamente é a desinformação?
Flávio Rocha: É isso.
Agência Brasil: A pesquisa detectou uma baixa confiança no governo entre os entrevistados, e essa é uma população que precisa ser alcançada por políticas públicas. Como os governos podem calibrar melhor essa comunicação?
Flávio Rocha: A falta de confiança no governo eu associo ao fato de a primeira parte dela ter sido feita antes do segundo turno das eleições, antes de saber quem seria eleito, porque havia uma alta rejeição ao governo Jair Bolsonaro entre os entrevistados. Foi um governo que desmontou políticas públicas para a população negra e a população LGBTQIAP+, então, havia uma descrença. E o Estado Brasileiro tem a função de prover informação e políticas públicas considerando a diversidade de todo o Brasil, e tem também o papel de regular a mídia para não haver essa produção de discurso de ódio e desinformação. A gente viu massacres no ambiente escolar sendo promovidos através das redes sociais.