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Líder marubo volta ao Vale do Javari após ação federal na região


Criada em abril de 2010, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) popularizou-se com o caso do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips. Ambos se tornaram aliados fundamentais da entidade na proteção dos povos que vivem na região.

Por iniciativa de Bruno Pereira, foi criada a Equipe de Vigilância da Univaja (EVU), que fez a primeira viagem de trabalho em agosto de 2021, com duração de cerca de um mês. A jornada gerou um relatório, intitulado Expedição de Monitoramento e Vigilância da EVU na Terra Indígena (TI) Vale do Javari: Rios Itaquaí, Ituí e Quixito, de 56 páginas, em que se mapearam 67 pontos, com coordenadas de sistema de posicionamento global (GPS), que indicam a latitude e a longitude de pontos de invasão na TI, incluindo locais onde encontraram vestígios da presença dos invasores.

Atualmente, a organização é coordenada por Paulo Marubo, mas garantiu um lugar de importância na capital federal por meio de outro líder marubo, Beto Marubo, que concedeu entrevista exclusiva à Agência Brasil, para lembrar como se deu a fundação da Univaja e comentar aspectos que impactam as comunidades indígenas.

Na entrevista, Marubo conta que, com a garantia de proteção dada pelo governo federal, está voltando para o território indígena e lembra o fato de estarem hoje na responsabilidade da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) mais de 13% do território nacional, que são terras indígenas. “Então, quem quer dar poder a essa instituição?”, questionou o líder.

Eis a íntegra da entrevista:

Agência Brasil: Pode contar como foi o processo em que você se tornou liderança, em que momento houve essa virada em sua vida, em que assumiu, pela primeira vez, a frente de uma organização, um ato?

Beto Marubo: O coordenador da Univaja é o Paulo Marubo. No contexto de [Jair] Bolsonaro, uma das estratégias pelas quais a Univaja optou foi criar uma representação em Brasília. Então, fui indicado para assumir essa representação. Depois, essa representação se tornou o principal polo agregador de articulação da Univaja, porque, a partir dela, é que a gente canalizou as falas com o governo, diretamente, porque todas as organizações que nos afetam têm as suas instâncias superiores localizadas em Brasília. Então, é fácil a gente falar com a presidência da Funai, da Sesai [Secretaria Especial de Saúde Indígena], MEC [Ministério da Educação]. Nesse sentido, conseguimos que parceiros também passassem a somar esforço conosco, sobretudo em um tema que vinha nos incomodando demais e que tem ainda nos incomodado, que é a questão territorial. Através dessa representação, conseguimos novos parceiros para se somar a essa luta, em um contexto onde havia negacionismo da parte do governo federal, o enfraquecimento das instituições. Aí, também veio o Bruno, o Dom Phillips e tantos outros que nos auxiliaram nesse processo, que, infelizmente, na questão específica do Dom e do Bruno, resultou nesse trágico assassinato, infeliz, que aconteceu. Cada um de nós tem uma atribuição, uma responsabilidade.

Agência Brasil: Como vocês distribuem as tarefas, também levando em conta esse contexto das ameaças?

Beto Marubo: Nós dois [Beto Marubo e o procurador jurídico da Univaja, Eliesio Marubo] estamos retornando. Desde junho [de 2022], quando foram encontrados os restos mortais do Dom e do Bruno, saímos daqui, porque as próprias autoridades policiais disseram que não tinham recurso, condição, para fazer a nossa proteção. Então, a gente saiu do território. Como a gente articulou para esse momento da vinda das autoridades, a retomada do Estado brasileiro no Vale do Javari, uma das solicitações foi que dessem esse aval, que o Ministério da Justiça [e Segurança Pública] desse essa garantia de segurança para a gente. O Eliesio teve que voltar, por conta de agenda, e eu estou indo para a base do Ituí agora e retorno para Atalaia do Norte, para uma outra programação que vou fazer para o território. Mas a gente tem que ver como vão mudar esses paradigmas. Não tem um parâmetro, para saber se isso vai ser bom, efetivo, ou não.

Agência Brasil: Como foi a fundação da Univaja?

Beto Marubo: A Univaja é resultante da derrocada que aconteceu no governo Fernando Henrique Cardoso, em que a política do neoliberalismo do governo vendeu, na época, para os indígenas, a ideia que de os indígenas também poderiam assumir responsabilidades com o governo. Aí, chamou a gente para executar a Saúde. Naquele tempo, a Univaja era Civaja, Conselho Indígena do Vale do Javari. Essa organização durou décadas e, de um dia para o outro, a gente começou a executar o orçamento da Saúde no Vale do Javari, através dos convênios. Só que uma das questões é que o governo não cumpriu o que tinha prometido, que a gente ia ser inserida como parceiro do governo para executar ações complementares de saúde, que ele iria nos capacitar. Haveria capacitação. Os indígenas seriam capacitados para ajudar o governo nessa. Só que não aconteceu isso. De um dia para o outro, a Univaja começou a executar recursos públicos, com pessoas que não tinham o menor conhecimento da máquina burocrática do governo, Lei de Licitação, enfim, por aí vai. Isso causou vários problemas insanáveis do CNPJ [Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica] do Civaja. Então, em 2006, houve uma reunião no interior da terra indígena, em que as lideranças do Vale do Javari disseram que o movimento indígena não tinha que ficar esperando que todas as questões jurídicas pendentes com o TCU [Tribunal de Contas da União], o governo, os órgãos de controle do governo prejudicassem o dia a dia do movimento indígena. Aí, naquele tempo, optaram por instituir a Univaja, que é o resultado dessa anomalia que se criou nessa questão. E a Univaja ficou, por muito tempo, apenas uma sigla de indígenas no beiradão do Javari. Ninguém conhecia a Univaja. Para a gente existir, precisava de terceiros. Tinha organizações indigenistas que nos auxiliavam com questões administrativas, execução de projetos, tudo. A partir de 2017, a gente fez uma parceria forte com a ambientalista Céline Cousteau, neta do [oceanógrafo francês]Jacques Cousteau, e com o Sebastião Salgado, fotógrafo, no sentido de amplificar, criar, como publicizar o nome da Univaja. Nesse contexto, a gente esteve em Nova York, em reunião da ONU [Organização das Nações Unidas], nas exposições do Sebastião Salgado, mundo afora. Aconteceu, primeiro, na Europa, depois no Brasil. A gente participou de diversos eventos internacionais de direitos humanos, na época, e isso se consolidou ainda mais durante o governo Bolsonaro, devido ao que nós estamos acompanhando, sobretudo quanto a direito indígena. Chegou-se ao ápice do conhecimento das pessoas tentarem querer saber o que era a Univaja, com a morte do Dom e do Bruno, porque houve uma publicização no mundo inteiro. Mas, antes, já existia isso, essa publicização proposital e, às vezes, não. Proposital no sentido de a gente divulgar mesmo nosso nome, falar da nossa causa, dos nossos objetivos e tudo.

Agência Brasil: Gostaria de saber um pouco sobre a aproximação com o Bruno e com o Dom. Como foi com cada um deles?

Beto Marubo: O Bruno, eu não estava na Univaja na época, apesar de estar no movimento indígena. Eu sempre trabalhei com a Funai. Uma das opções, logo que eu terminei meu ensino médio, foi optar por ser mais efetivo, ajudando meus parentes. Então, entrei logo na Funai. Na Funai, no concurso de 2010, recebi vários candidatos novatos na época, dentre eles, o Bruno. O Bruno sempre se destacou, era uma pessoa empenhada, um cara que queria, estudava, demonstrou sempre interesse e foi um dos servidores que se destacavam na época. Investimos nele, levamos ele para a área [da terra indígena], treinamos ele. E ele sempre foi uma pessoa de querer saber, somar, era um indigenista. Aprendeu línguas, o que é muito difícil, que são as expedições de campo em uma área com 8,5 milhões de hectares, sobre a questão dos indígenas isolados. Por um bom tempo, grande parte do tempo dele na Funai, ele foi coordenador regional, que é um cargo burocrático, porque o cara fica aqui em um cargo na coordenação regional da Funai. E aí, ele era um burocrata, virou um burocrata, não porque ele queria. Quando teve oportunidade de sair, ele se dedicou, ao máximo, à questão dos indígenas isolados. A gente levou ele para uma base chamada Bananeira, que fica em Rondônia, com um dos grandes indigenistas da nossa atualidade, assim como ele mesmo é, que é o Rieli Franciscat. O Rieli ensinou a ele tudo sobre expedição, como lidar, especificação sobre indígenas isolados. Ele ficou em torno de nove meses na base Bananeira e, quando se sentiu seguro para fazer o trabalho de campo, voltou para o Vale do Javari. Só que aí já era o governo do Jair Bolsonaro, um governo que jogava contra e começou a perseguir ele.

Agência Brasil: E como se dava essa perseguição?

Beto Marubo: Através de processo administrativo, de intimidação institucional, o que não é novidade. Não temos isso somente na Funai. [Tem também no] Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis], na Polícia Federal, nos órgãos. Havia reuniões em que o próprio presidente da Funai vociferava “Eu quero alguma coisa com que eu possa pegar esse cara. Ele está nos prejudicando, está com os índios. Quero que ferre esse cara”. A gente ouvia isso das próprias pessoas da Funai. Isso chegou ao ápice quando ele fez uma operação aqui no Rio Jutaí, com o Ibama e as forças especiais do Ibama e da Polícia Federal, e era uma demanda que o governo federal não queria. Ele fez, mesmo assim, junto com os colegas do serviço público. Eles concordaram e fizeram. Aliás, ele fez duas operações: uma na Terra Indígena Yanomami e outra, ao mesmo tempo, aqui no Vale do Javari. E, logo depois dessas operações, saiu a exoneração dele. Então, o ministro Onyx Lorenzoni, que era da Casa Civil, fez a exoneração dele. E, como eu já conhecia ele, éramos amigos, eu já estava na Funai, estava nesse contexto de assumir a representação da Univaja em Brasília, consegui um apoio muito importante para a proteção territorial. E eu estava com dificuldade de ter pessoal técnico para fazer esse trabalho de campo e convidei ele. Eu disse: ‘Olha, Bruno, preciso de você, para a gente coordenar esse trabalho de campo’. E ele aceitou. Na época, ele pediu afastamento não remunerado da Funai e passou a atuar diretamente no trabalho de vigilância territorial no Vale do Javari.

Agência Brasil: E em relação do Dom? E como é a relação com a imprensa?

Beto Marubo: Na época, tinha um período de a gente dar visibilidade ao Vale do Javari. Nesse contexto, entraram essas duas pessoas que foram importantes: Céline Cousteau e Sebastião Salgado. E eles têm muito vínculo com a parte e comunicação. O Sebastião tem muito acesso. A própria Céline tem acesso a mídias e veículos de comunicação nacional e internacional. A própria figura deles. Surgiu um interesse muito grande da imprensa, para saber sobre esse trabalho que vinha sendo desenvolvido no Vale do Javari, no período do governo Bolsonaro, os retrocessos, a questão ambiental. O Dom me pediu, uma vez, me procurou, para fazer matérias sobre a equipe de vigilância da Univaja. Disse que estava querendo fazer um texto para o [jornal britânico] The Guardian sobre as dificuldades das comunidades indígenas para se manter durante o contexto de Bolsonaro, manter seus territórios intactos, com o aumento das invasões etc e tal. A gente falou: ‘Olha, Dom, uma das populações mais vulneráveis são os isolados. A gente tem que dar ênfase aos isolados’. O Bruno levou ele para uma expedição de indígenas isolados. Ele estava para sair, mas ainda estava na Cgiirc [Coordenação-geral de Índios Isolados e Recém-contatados], e o Dom participou de uma expedição de uns 30 dias, no mato, com o Bruno. Isso em um primeiro momento. Em um segundo momento, eles viraram amigos. A partir dessa expedição, passaram a trocar mensagens. O Dom queria fazer um livro, estava construindo um livro falando sobre as questões da Amazônia. Ele veio, novamente, me procurou e ao Bruno. As últimas matérias que ele fez tiveram repercussões importantes para o Vale do Javari, chamaram muita atenção. Aí, a gente falou também: ‘Beleza, então, vamos somar, mais uma vez dar visibilidade a essa questão do livro’. O Bruno chamou ele, trocamos ideia. Foi feito um trabalho, ele esteve aqui. Ele esteve aqui em três momentos: na expedição, depois, teve entrevistas pontuais e depois foi a campo, que aí queria entrevistar a EVU, que é a Equipe de Vigilância da Univaja. Ele foi, fez as entrevistas e, aí, você já conhece essa história. Morreu. Mas o Dom foi fundamental nesse processo que descrevi para você, de chamar a atenção da mídia nacional e internacional sobre o que estava acontece no Javari.

Agência Brasil: Pode falar um pouco sobre essa equipe? O que vocês aprenderam sobre aprimorar a segurança de vocês?

Beto Marubo: Como a gente já atuava nisso, como te falei, por mais de dez anos, a gente atuava na Funai com esse tema, de proteção territorial, a gente já tinha expertise. A gente teve cursos de capacitação, junto com a Funai, o Ibama, a Polícia Federal. E é algo muito específico também. Nesse contexto, o Bruno, já fora da Funai, pensou em como qualificar as informações de invasão territorial. Ele pensou em como a gente ia apresentar essas informações aos órgãos em que a gente tem confiança, como o Ministério Público Federal. Como apresentar denúncias contundentes sobre o que havia acontecido no Javari. A primeira questão foi antes da pandemia. A gente analisou as vulnerabilidades, inclusive as devidas à pandemia [de covid-19]. O estado em que iam estar os korubo, já imaginou? Os korubo vão morrer, estava morrendo um monte de gente em Manaus, a gente via pelos jornais. Vai matar muito isolado aqui. Uma Funai negacionista. Não, está tudo lindo, maravilhoso, não há possibilidade. Não, os indígenas estão isolados. Não, a gente compartilha o território com eles. E os marubo já estavam pegando [covid-19]. Mayuruna, matis pegando coronavírus. Se a gente compartilha o território, obviamente, eles iam pegar também. Só que eles não têm imunidade como nós. Nem os demais tinham. Como vacinar, se são indígenas isolados? A gente entrou na [Arguição de descumprimento de preceito fundamental] ADPF 709, junto com a Apib [Articulação dos Povos Indígenas do Brasil], no Supremo [Tribunal Federal]. E, ao mesmo tempo, a gente treinou uma equipe de indígenas para qualificar essas informações das invasões, que, até então, haviam sido inócuas. Olha, Ministério Público, olha, Polícia Federal. Aumentaram as invasões. Ficou inócuo, principalmente porque não tinham o menor interesse em resolver. A gente resolveu, decidiu qualificar isso tecnicamente. Mas, como qualificar isso, se os principais atores que estão na capilaridade, dentro da terra indígena, são os indígenas, nós, parentes. O Bruno pegou essa expertise que ele tinha e o trânsito que tinha nas comunidades e treinou os próprios indígenas para trazer as informações para ele. Treinamos indígenas para manejar drones, ler cartografia. Junto com nossos parceiros, Imazon [Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia], WWF [Fundo Mundial para a Natureza] e tantas outras organizações indigenistas, ambientalistas, foi criado um aplicativo em que os parentes levavam o celular ao local, mesmo não tendo internet, tiravam foto, faziam pequenas anotações, um áudio, e, olha, a invasão, tudo. Tiravam foto e traziam isso para um sistema de computador no qual saía um relatório de tudo que os parentes viam no mato. Um relatório muito embasado tecnicamente. Essas investigações chegaram a ser tão técnicas que até hoje estão sendo usadas em investigações e ações na Justiça Federal. Alguns a favor mesmo das instituições do governo, justificando, e outros mesmo, nós, lutando por direitos. Então, funcionou isso, tanto que ameaçou as quadrilhas e resultou no assassinato deles dois. As quadrilhas sabiam daquilo. Quem estava no comando dessa equipe indígena era o Bruno. Eles sabiam disso. Os indígenas começaram a se empoderar. A gente tinha a imprensa, tinha como divulgar isso na imprensa. Nós tínhamos como pressionar as instituições, Polícia Federal, MPF [Ministério Público Federal]. Tinha como apresentar essas informações a eles, e isso incomodava muito o pessoal, no contexto de Bolsonaro. Foi criado, ele mesmo [Bruno] denominou isso de Equipe de Vigilância da Univaja. Foi o próprio Bruno que escolheu esse nome. No início, eram 20 parentes que ele treinou. Esses parentes replicavam para mais 20 e, aí, virou um momento cíclico. Hoje, temos 20 parentes no mato, fazendo o trabalho para o qual foram treinados. Não pararam. Desde a morte do Bruno, não pararam.

Agência Brasil: Pode falar sobre a sede, que é onde vocês se articulam? Como fazer a segurança da sede?

Beto Marubo: Isso foi objeto de discussão, ainda é, no âmbito das instâncias do governo competente. Primeiro que a gente descobriu que o PPDDH [Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas] não é adaptado para os povos indígenas. A gente propôs um estudo técnico. Inclusive, a Univaja é uma das organizações que foram oficializadas na última reunião que aconteceu no Ministério dos Povos Indígenas, no último dia 22. Tivemos uma reunião com o ministro Silvio Almeida [dos Direitos Humanos e da Cidadania], e ele convidou a Univaja para fazer uma reformulação no programa, baseado nessa visão muito específica dos povos indígenas. Não é adaptado para as comunidades indígenas. Além de ser muito frágil, não dá garantia de proteção coisíssima nenhuma. Nesse sentido, a gente chamou a atenção do Ministério dos Direitos Humanos. Esse é um ponto. O outro é que estamos falando para as instituições, e esse evento que aconteceu aqui foi muito nessa linha, da presença do Estado, de maneira ostensiva, operacionalizada, centralizada. Porque, se formos analisar, a fronteira do Vale do Javari não é desassistida. Temos um contingente da Polícia Federal, da Força Nacional, da Marinha, do Exército. Da Aeronáutica, em menor tamanho, mas tem. Das polícias do estado, Civil e Militar. Em comparação com outras fronteiras, que são tão distantes quanto. O que não existe é uma atuação interinstitucional, organizada, baseada na inteligência, com estratégias específicas com que lidar no crime organizado, em um contexto em que os crimes transnacionais são muito comuns e têm crescido nos últimos anos. Por exemplo, como pensar em combater o crime em uma região onde tem o Peru e a Colômbia, que precisam estar nesse contexto também? E em que as invasões  e a violência do Vale do Javari estão totalmente consorciadas com esse contexto de crimes transnacionais. Por mais que o governo brasileiro faça, através das forças de segurança do Brasil, deve ter essa conversação com os países vizinhos também. Do contrário, o combate ao crime transnacional vai ser inócuo. Voltando aos crimes que têm conexão com as invasões do território, a gente espera que sejam fortalecidas as bases de vigilância do Vale do Javari. São quatro. A gente precisa de cinco bases. São a base de Curuçá, a base de Jandiatuba, a do Ituí e a do Quixito. Elas foram criadas estrategicamente para proteger o território e, principalmente, os indígenas isolados e de recente contato. Fecham as principais vias de entrada do Vale do Javari. Têm que ser fortalecidas, mas como? A Funai foi muito enfraquecida no governo Bolsonaro. Não é um método do governo Bolsonaro, mas foi muito mais enfraquecida nesse período. Precisa muito de concurso. A gente ouviu do presidente do Ibama que o Ibama está tão sucateado quanto. Eles tinham um contingente de 2 mil, 1 mil funcionários atuando no operacional e atualmente estão tendo que lidar com uma força de 600 pessoas.

Agência Brasil: Uma coisa que foi mencionada é que, às vezes, algumas pessoas acabam ficando lotadas aqui e desistem, largam mão. Como se pode pensar em uma estratégia para reter, principalmente quem tem um potencial como o Bruno?

Beto Marubo: Primeiro, tem que fazer o concurso levando em conta as especificidades do órgão. Não se pode pensar no fortalecimento de órgãos como a Funai e o Ibama sem antes fazer uma repaginação, uma reestruturação institucional deles. Porque a atuação deles exige uma série de especificidades que o serviço público não comporta dentro dos protocolos. Por exemplo, como a gente vai trazer um indigenista para atuar 90, 60 dias em uma base da Funai? Não cabe nisso, mas é o que é necessário. Por mais que você tenha uma base estruturada, com condições de trabalho, a forma de ele estar longe de sua família, nesses espaços, já é algo que a lei que ampara, e o serviço público federal não contempla. Você tem que entrar com outros incrementos, diárias, adicionais, penduricalhos que são legais. Mas como manter isso? Esse é um fato: que eles têm que ser adaptados a essa realidade. O trabalho primário da Funai, finalístico, exige muita mão de obra que não é um cara de nível médio, nível superior. Por exemplo, rastreador de selva. É um caboclo amazônico, é parente, é indígena, entende? É fundamental, em uma expedição, um cara desse. Um serrador de motosserra. Vai fazer um concurso só para um rastreador, um serrador de motosserra? Como contratar esse tipo de gente, que é só aqui que tem e não tem em Brasília ou outra região? Essas questões enterram a Funai. E por que não abrir espaço para que os próprios indígenas participem, como servidores? Um concurso regionalizado. Não indígenas, locais que tenham expertise, que possam fazer. Porque uma coisa é você trazer um servidor de São Paulo para cá, Rio Grande do Sul, Minas Gerais. Ele não vai conseguir ficar. Olha Atalaia do Norte. Eles não vão suportar e vão embora. Você pode fazer cinco, dez, quinze concursos e nunca vai ter gente aqui. O Bruno é a exceção da exceção. Eu costumo dizer que ele era um ponto fora da curva. Ele mesmo, no início, porque a Funai deu para a gente um prazo para fazer a seleção de campo deles. Ele foi uma das pessoas que não tinham o menor perfil. Foi o primeiro que sugeri tirar do concurso, porque o cara era grandão, gordão, quase 2 metros no mato. Eu não precisava de um cara daquele tamanho no mato. E ele era uma das pessoas que a gente ia excluir. O que chamou a atenção da gente era a gana dele de aprender, e ele queria estar na Funai. Ele lutou demais pela vaga dele. Era uma pessoa que estava totalmente fora, e os indígenas perceberam isso. Tecnicamente, ele estaria fora do concurso, não tinha físico para andar em uma expedição. Mas os mais velhos perceberam nele… Eu me lembro que teve um velho que falou assim: Talvez ele não tenha físico, mas ele tem uma alma nossa. Foi fundamental o parecer desse velho.

Agência Brasil: Pode falar um pouco sobre a sua história? Acho importante falar sobre as figuras que estão à frente da Univaja.

Beto Marubo: Eu nasci na aldeia Maronal, que fica na região sul do Vale do Javari, em 1976. Na década de 1980, os marubo tinham um vínculo comercial muito grande com a venda da borracha para os comerciantes seringalistas na região de Ipixuna, região sul da Terra Indígena de Boa Fé. E os velhos chegaram à conclusão de que, como não dominavam bem o português, essa história de contar números e valores, estavam sendo passados para trás. Já viu o assédio de religiosos com relação aos parentes, que é outro problema no Vale do Javari? O missionarismo irresponsável, fundamentalista atrás de contatar os parentes isolados. Na minha época, não era diferente. Tinha uma base católica em Cruzeiro do Sul, em que ensinavam os padres que vinham da Europa a falar português. Os velhos falaram: ‘A gente quer que vocês, católicos, treinem três jovens da nossa aldeia para falar português e a saberem números’. Nesse contexto, fomos eu e dois primos meus para Cruzeiro do Sul. Um acordo dos indígenas com o pessoal católico. Eu tinha 17, quase 18 anos. Quando terminei o ensino médio, a primeira coisa foi honrar o que esperavam de mim, porque disseram: ‘Olha, a gente queria alguém que fale português, que lute pela gente’. Não tinha mais borracha, encerrou o processo da borracha, e aí eu fui para a Funai. Estive na Funai por muito tempo, mais de 12, 13 anos. Saí em 2017. Sempre trabalhei na Funai. E, quando eu saí, o movimento disse: ‘A gente vai precisar de você, da sua expertise, do seu trabalho, você fala português bem, para atuar com os parceiros’. Mas não se constrói liderança, a gente já nasce com esse perfil.

Agência Brasil: E você rodou lá dentro da Funai, em termos de função?

Beto Marubo: Sim. Eu assumi a chefia de Proteção, trabalhei no Mato Grosso também, no Acre, como chefe de Proteção. E não assumi funções que pude assumir, fui convidado, por questões de gostar mais de campo.

Agência Brasil: E isso se refletiu também na questão de família? Você tem filhos que deixa para exercer essa função de liderança?

Beto Marubo: Com certeza. Você tem que abdicar de várias questões. Eu casei com uma mulher branca. Meus filhos estão sendo agora inseridos na aldeia, para aprender a língua, mas moraram em Brasília, nasceram em Brasília. A gente tem que se adaptar. O ser humano é incrível, se adapta em qualquer contexto. Mas, se você está fora do seu território, longe da sua casa, da sua família é um dilema muito grande. Uma, por questão mesmo de estratégia do movimento indígena, de abrir essa representação, e, dois, porque você não pode voltar, porque é ameaçado. A gente saiu daqui em junho, depois das buscas.

Agência Brasil: E como são essas ameaças?

Beto Marubo: São ameaças veladas, são recados. No caso, mandaram um bilhete lá no escritório do meu irmão, falando os nomes das pessoas, dentre as quais estávamos eu, o Bruno, meu irmão. Isso antes do que aconteceu com o Bruno, um mês antes. O escritório ficava em Tabatinga e, aí, ele saiu da região.

Agência Brasil: Algumas lideranças falam sobre uma Funai armada. O que pensa sobre isso?

Beto Marubo: Tem uma atribuição objetiva e finalística da Funai, que é a proteção e a fiscalização do território. Esse é um trabalho de polícia. Não se faz proteção e fiscalização com flores. Só que nunca houve interesse de ser uma instituição a mais, com as garras do Estado nesse controle. Simples assim. Não por acaso, estão na responsabilidade da Funai, hoje, mais de 13% do território nacional, que são terras indígenas. Então, quem quer dar poder a essa instituição? Ela vem sendo protelada por um bom tempo. Resultado: servidores cobrados por indígenas. Estão fazendo o trabalho institucional deles, e eles morreram em serviço. O Bruno é resultado disso. O trabalho da Funai não é diferente do do Ibama. Por que é que o Ibama tem isso regulamentado e a Funai, não? Claro, assim como o Ibama, não precisa que a Funai tenha todos os servidores com essa questão, somente aquele pessoal que está na linha de frente. E que eles tenham todas as instituições legais institucionais, para fazer o trabalho de repressão a esses ilícitos que afetam a vida dos indígenas em seus territórios. É importante regulamentar, sim, com a máxima urgência, porque novos servidores vão estar morrendo. Imagina o cara fazendo fiscalização com flores? Não existe.



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