A cena se repete todos os dias, de segunda a sexta-feira. Por volta das 11h, há um alvoroço num trecho da rua do Senado, no centro da cidade do Rio de Janeiro. Dezenas de pessoas, sentadas ou deitadas na calçada, protegidas por árvores e um abrigo de ônibus, correm para formar uma fila quando veem voluntários saírem do número 50.
A confusão é inevitável. Aqueles que chegaram mais tarde tentam se posicionar à frente de quem estava ali desde cedo e se organizar, mesmo que de forma precária. Enquanto isso, os voluntários do número 50 anotam os nomes dos que correram para a fila.
Apenas 100 dos muitos sem teto que vivem em situação de rua serão selecionados naquele dia e contemplados com um almoço, oferecido gratuitamente pela organização não governamental Fraternidade sem Fronteiras. A ONG funciona ali, no número 50, há quase dois anos.
Para alguns deles, aquela será a única refeição do dia, se tiverem sorte. Marcelo, de 41 anos, era um dos primeiros na “fila da fome” na manhã da primeira quinta-feira de março (2). Desempregado desde que deixou a cadeia em 2019, em liberdade condicional, ele depende da boa vontade de outras pessoas para comer.
À noite, consegue jantar em um abrigo da prefeitura, mas, durante o dia, tem que batalhar por sua refeição. “Briguei com meus irmãos e tive que sair de casa. Estou na rua há um ano e seis meses. É uma situação complicada, porque nós não temos dinheiro. Então tem que correr onde tem comida”, disse Marcelo à Agência Brasil.
Também na fila, Márcio, de 39 anos, teve que deixar a casa onde vivia com a mulher e cinco filhos, há três meses, por ser usuário de drogas. Ele diz que está “livre do vício”, mas, desempregado e morando na rua, trava uma luta diária para poder se alimentar. “Às vezes a gente consegue comer nos abrigos, às vezes algumas igrejas também dão. A gente vai sobrevivendo com a ajuda de outras pessoas”.
Paulo César, de 27 anos, três deles vivendo na rua depois de ser expulso de sua comunidade por criminosos, também conseguiu seu almoço na última quinta-feira. Mas nem sempre é assim. Sábado e domingo não tem almoço na ONG. E, às vezes, mesmo durante a semana, não tem sorte de estar entre os selecionados.
“Estou todo dia nessa rota aqui. Às vezes quando falta aqui, tem que correr atrás. Aí vai na Central, às vezes arruma lá. Quando lá não tem, degringola tudo. Tem que ficar garimpando em mercado, quando sobra, ou então nas lojinhas de salgado, quando joga na lixeira, a gente vai lá e pega. Já fiquei dois dias sem comer”, lembrou.
A ideia de oferecer almoço para a população de rua surgiu durante a pandemia de covid-19, segundo a coordenadora do projeto, Isabel Silveira.
“Como é que você consegue fazer qualquer coisa de barriga vazia? A alimentação é uma possibilidade de garantir a primeira necessidade básica do ser humano. A partir do momento que eles estão se alimentando, podemos construir outras questões”.
A “fila da fome” é apenas um exemplo do problema da insegurança alimentar nas grandes cidades brasileiras.
Insegurança alimentar
Segundo pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan) feita com 35 mil entrevistados e divulgada em 2022, 57,8% da população urbana do país enfrentam algum grau de insegurança alimentar, ou seja, não se alimentam da forma como deveriam. Pelo menos 15% estão na situação de insegurança grave, o que significa que milhões de pessoas passam fome no Brasil.
A secretária nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, Lilian Rahal, destaca que a cidade é onde se concentra a maior parte da população que enfrenta a fome. “Os dados da Rede Penssan mostram que, percentualmente, há mais fome no [espaço] rural do que no urbano. Mas numericamente tem muito mais gente nas cidades passando fome do que no rural”.
Portanto, não são apenas os moradores de rua que precisam lidar com o problema. Estudo feito pela Central Única das Favelas (Cufa) e pelo Instituto Locomotiva, em fevereiro de 2021, com 2.087 moradores de 76 favelas brasileiras, mostrou que 68% dos entrevistados não tinham dinheiro para comprar comida em pelo menos um dia nas duas semanas anteriores à pesquisa.
“As pessoas em situação de rua são o lado mais extremo, inaceitável e desumano da fome. Mas também há situações de pessoas [que têm casa] que comem menos do que deveriam comer por dificuldade de acesso ao alimento. Tem pessoas que restringem a alimentação em alguns dias para que essa alimentação possa durar o mês inteiro, até um próximo momento em que seja possível adquirir esse alimento novamente. São situações que refletem a fome de alguma forma”, afirmou a pesquisadora do Instituto de Nutrição da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Juliana Lignani.
Segundo ela, a insegurança alimentar tem origem nas desigualdades, sejam de renda, de moradia, de gênero ou racial. “São situações que vão levar a dificuldade de acesso ao alimento. Pode ser uma dificuldade de acesso financeiro. São pessoas que não conseguem ter um rendimento suficiente para adquirir essa alimentação de maneira adequada. Também pode haver uma dificuldade de acesso físico. São pessoas que moram em determinadas regiões que dificultam o acesso ao alimento”, explicou.
A pesquisadora afirma que fatores como empregos precários e o tipo de arranjo familiar também podem ser problemas para uma alimentação adequada. Famílias com muitas crianças ou adolescentes, por exemplo, encontram mais dificuldade.
“São moradores que demandam renda e, na maioria das vezes, não contribuem com a renda. E a gente até espera que isso aconteça, já que as crianças não devem trabalhar.”
Juliana Lignani explica que resolver a questão da fome não é simples e exige políticas além dos programas governamentais de transferência de renda.
“A gente precisa trabalhar nas questões estruturais que levam a esse cenário. Ao mesmo tempo deveriam ocorrer as políticas emergenciais, como as de transferência de renda, que vão sanar no momento, mas a gente também precisa das políticas estruturais que vão resolver as causas desse problema, como o aumento de empregos formais e de abastecimento das grandes cidades para que esse alimento chegue de maneira mais fácil à população.”
A secretária de Segurança Alimentar, Lilian Rahal, afirma que as estratégias do governo federal incluem “políticas públicas amplas”, como o aumento da produção de alimentos básicos, ações de disponibilização de refeição pelos municípios, a garantia da chegada de alimentos a locais com maiores índices de desnutrição, o crescimento da renda das famílias, a recuperação do poder de compra do salário mínimo, a geração de empregos e o fortalecimento do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).
Além disso, segundo ela, o governo quer reforçar o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que estimula a compra de comida produzida por pequenos produtores e agricultores familiares, através da recuperação do orçamento e de uma reformulação, fazendo com que os alimentos cheguem nas famílias mais vulneráveis, inclusive nas cidades.
“Que a distribuição [desses alimentos] chegue cada vez mais para quem está passando mais fome, para as famílias e regiões com maiores indicadores de desnutrição e para equipamentos que ofertem refeições para quem está passando fome nas periferias ou nas grandes cidades”, destacou.