Foi a avó que ensinou Rita de Cássia da Silva a pescar, aos 7 anos de idade. No cenário paradisíaco da Praia de Macau, no Rio Grande do Norte, aprender o ofício dos mais velhos significa a transmissão de um saber ancestral, mas também uma “necessidade”. “A gente era muito pobre. Ela não tinha como me deixar sozinha”, lembra.
Embora o mar a encante e seja um saber passado pelas gerações, não há motivo para romantizar a atividade. Tanto que também foi a fome que fez o marido de Rita ir para o mar em uma noite de lua cheia, no ano de 1993, para tentar o sustento da família. Ele não sabia que era uma área de empresários que mantinham viveiros de camarões. “Meu marido tomou um tiro do vigia da empresa e depois faleceu”. Ele não queria roubar nada de ninguém. Mas o sangue e a dor nas águas mostraram para a família que o mar não era deles, como sonharam.
Em Macau (RN), aprender o ofício dos mais velhos significa a transmissão de um saber ancestral – Foto Divulgação dos pescadores
Grito
Quem trabalha com a pesca artesanal sabe que são necessárias mais condições, garantias de direitos e políticas públicas para que o mar não seja tão revolto. Inclusive, nesta semana, em Brasília, pelo menos 800 trabalhadores da pesca de 18 estados fizeram uma série de discussões para pedir mais atenção para a categoria, no evento Grito da pesca artesanal.
A proposta foi discutir com órgãos governamentais e outras entidades as violações de direitos, regularização das comunidades tradicionais e os impactos das mudanças climáticas nas comunidades pesqueiras. No caso de Rita, hoje aos 45 anos de idade, a vida dela passa por uma canoa com rabeta a motor de 6 metros de comprimento, onde percebe que outros desafios se colocaram sobre as ondas. “A mudança do clima é nítida. Hoje é muito mais quente e existem, por exemplo, muito menos anchovas, tainhas e xaréus [peixes que eram mais comuns naquela região]”.
Se os períodos de estiagem prejudicam a pesca no litoral potiguar, foram as enchentes que impactaram os pescadores da Ilha dos Marinheiros, em Rio Grande, no Rio Grande do Sul. Viviane Machado Alves, de 44 anos de idade, atua na região do Estuário da Lagoa dos Patos, uma região de lago onde trabalham mais de 4,8 mil pescadores, desde os 20 anos de idade. Ela lamenta que da ilha para o estuário não há mais ponte, destruída pelas enchentes do primeiro semestre. Ela denuncia que a comunidade está com dificuldades de acesso a benefícios, reconstrução de casas e também autorização para que possam pescar em uma área maior.
Para quem pesca no Rio São Francisco, como o mineiro João Batista da Silva, de 50 anos de idade, nascido e criado na comunidade quilombola Caraíbas, de Pedras de Maria da Cruz, as mudanças climáticas e a poluição do Velho Chico desanimam as 40 famílias que vivem das águas. “Temos sentido muito a falta do surubim, do pacamão e do curimatã. Antes era muito diferente”, disse.
O rio nunca mais voltou a ser o mesmo”, garante o trabalhador que criou nove filhos com a atividade no rio. A pesca é para sustento das famílias e também para comercialização no centro da cidade, que fica a 12 quilômetros de distância da comunidade quilombola. Ele enfatiza que as atividades deles são de proteção ambiental, e que, por isso, recebe ameaças de violência. Tanto que atualmente está em programa de proteção governamental.
Essa é uma preocupação da Pastoral dos Pescadores e Pescadoras, que busca apoiar as comunidades na preservação e proteção das áreas. De acordo o secretário de Economia Solidária da entidade, Marcelo Apel, as ações da pastoral têm a intenção de prestar suporte aos trabalhadores para minimizar as desigualdades e a histórica escassez de políticas públicas.
Pescadora da Praia de Macau (RN) – Foto Divulgação dos pescadores
Programa de apoio
O secretário Nacional de Pesca Artesanal do Ministério da Pesca e Aquicultura, Cristiano Ramalho, reconhece que existe um déficit histórico de políticas públicas voltadas ao atendimento a essas comunidades pesqueiras.
Segundo ele, o governo federal tem apoiado que os trabalhadores façam denúncias por mais direitos. “O pedido das comunidades pesqueiras artesanais, quando envolve temas de conflitos, é um tema muito caro às comunidades. Da mesma forma, em relação às questões de poluição e mudanças climáticas. A gente aciona órgãos estaduais quando compete dentro do pacto federativo”.
Ele lembrou que, no ano passado, o governo lançou o programa Povos da Pesca Artesanal, que busca uma articulação de diferentes ministérios e parcerias com diferentes âmbitos de governo, incluindo saúde.
“É uma ação direta com apoio à juventude da pesca artesanal, com bolsas de estudo, fortalecimento da cadeia produtiva da pesca artesanal e combate ao racismo ambiental. A gente tem feito isso com orçamentos diretos com a construção do primeiro Plano Nacional da Pesca Artesanal”.
Ele defende a necessidade de reforçar a política de Estado para uma categoria que necessita de apoio e está em vulnerabilidade.
Atualmente, segundo o secretário, são cerca de 1,2 milhão de pessoas que trabalham na atividade, sendo que 80% delas concentradas no Nordeste e no Norte do Brasil. É uma população em sua maioria de homens negros e negras.
O programa do governo vai ao encontro de enfrentar uma das expressões da desigualdade histórica do Brasil, afirmou Cristiano Ramalho.