Um movimento intenso de aviões e helicópteros em um ponto remoto no meio da selva amazônica tem sido rotina no Polo Base de Surucucu, no extremo norte do país, a poucos quilômetros (km) da fronteira entre o estado de Roraima e a Venezuela. O aumento desse fluxo decorre dos efeitos da ação em curso para mitigar a crise humanitária do povo yanomami, que vem chocando o país nas últimas semanas.
A reportagem da Agência Brasil passou um noite na região, entre os últimos dias 9 e 10 de fevereiro, para acompanhar de perto o trabalho incansável de profissionais de saúde no socorro aos indígenas, afetados por uma desassistência generalizada e pela presença do garimpo ilegal na região. A situação é histórica, mas se agravou ao longo dos últimos quatros anos, o que mobilizou as autoridades.
O Polo Base de Surucucu dispõe de uma pista asfaltada para pousos e decolagens e também abriga o 4º Pelotão de Fronteira (PEF) do Exército Brasileiro. Por ali, a única forma de acesso entre diversas comunidades é por via área. O aeródromo fica a quase 300 km de Boa Vista, em pouco mais de uma hora de voo sobre a floresta densa. Por isso, a unidade básica da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde tem, nesse polo, seu ponto de referência para pacientes de outras regiões do território. Um helicóptero fica de prontidão no PEF e é acionado para diversas missões, como buscar e levar pacientes de outras comunidades, além de interiorizar médicos e enfermeiros que vão atuar em unidades de saúde menores dentro do território. No período em que a reportagem acompanhou as atividades, a aeronave foi utilizada incontáveis vezes.
“Aqui em Surucucu a maior parte das aldeias é de difícil acesso. É um desafio imenso para todos os responsáveis pela logística de helicóptero e alguns funcionários do Distrito Sanitário Especial Indígena [DSEI], que incansavelmente se esforçam para conseguir realizar o resgate dos pacientes com os mais diversos problemas, como malária, desnutrição, desidratação. Essas doenças tiveram aumento significativo, diretamente relacionado ao aumento do número de invasores do território, além de incidentes inerentes à vida na floresta, como picada de cobra, queda de altura, entre outros”, explica a médica Gabriela Mafra, que há quatro anos atende os yanomami.
A chegada de aviões provenientes de Boa Vista também é intensa, com o desembarque de medicamentos e suprimentos diversos, além da remoção de pacientes. Somente em janeiro deste ano foram 112 remoções de pacientes graves para a capital do estado, o que dá uma média maior que três por dia, de acordo com números do Centro de Operações de Emergência (COE), criado pelo governo para enfrentar a crise humanitária. O COE também informou que, no mesmo período, fez 111 remoções dentro do próprio território, transportando pacientes de aldeias para serem atendidos em polos de saúde locais da Terra Indígena Yanomami. A prioridade para resgates e transporte de suprimentos dificulta o acompanhamento de atenção primária, com visitas às comunidades.
“Em meio a todos os resgates, devolução de pacientes de alta, trocas de equipes e entrega de materiais, gostaríamos de encaixar visitas às aldeias. E aí há grande dificuldade que, somada ao número de profissionais – que tem sido insuficiente para a realização das visitas -, nos prejudica nos atendimentos presenciais às aldeias. Hoje percebo que passamos muito tempo lidando com agravos de patologias que poderiam ser evitadas se não estivesse sendo tão desafiador realizar as visitas”, afirma Gabriela.
Na unidade de saúde do DSEI em Surucucu, a maior parte dos pacientes é formada por crianças e pessoas idosas. A casa principal tem uma espécie de enfermaria, onde os pacientes ficam deitados em redes. Muitas crianças choram de dor, seja por sintomas de malária, diarreia ou desnutrição. Há ainda uma sala para o atendimento de casos mais graves, com maca e alguns equipamentos. Uma casa ao lado serve de suporte, com cozinha, depósito de medicamentos e suprimentos.
UPA indígena
Outro desafio que virou praticamente consenso entre os profissionais de saúde é a necessidade de expandir os atendimentos no imenso Território Yanomami além da atenção primária em saúde.
“Acredito num novo formato de atendimento que atenda às demandas de vacina, puericultura, pré-natal, saúde do idoso, entre outras, mas que também nos ajude a estar preparados para lidar com situações mais delicadas e graves, como a estabilização de um paciente com pneumonia grave, ou com um ferimento por flecha ou arma de fogo. Quem sabe até equipar o polo com aparelhos de exames simples como hemograma, por exemplo. Isso reduziria significativamente o número de remoções para Boa Vista e o número de óbitos”, prevê a médica.
“O caso yanomami está permitindo um debate importante de superar a barreira de ficarmos com a competência apenas da atenção básica. Por que já não começamos a discutir sobre uma unidade de pronto atendimento indígena?”, destaca Weibe Tapeba, secretário especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde. Ele visitou a unidade do DSEI Yanomami no Polo de Surucucu, na última quinta-feira (9), e conversou com médicos, enfermeiros e pacientes. A ideia do governo é instalar ao menos dois hospitais de campanha de média complexidade dentro da terra indígena.
“Nós entendemos que, no Território Yanomami, pelo menos dois hospitais de campanha, além do que foi instalado em Boa Vista, são necessários para evitar esses deslocamentos”. Apesar disso, alerta o secretário, a reestruturação plena do serviço de saúde no território só será possível com a desintrusão dos invasores.
“Temos condição de ampliar nossa capacidade de assistência dentro do território, de apresentar um plano mínimo de funcionamento das nossas estruturas, mas isso só é possível se tiver segurança”, acrescentou.
Cuidados
Enfermeiro com mais de 33 anos de profissão, Marcos Fonseca é integrante da Força Nacional do Sistema Único de Saúde (SUS) que está reforçando os atendimentos na Terra Indígena. Acostumado com missões humanitárias, Fonseca já atuou no atendimento de desabrigados após enchentes ocorridas no Acre, em 2011, e também no acolhimento de imigrantes haitianos, no mesmo estado, em 2012. Apesar disso, a missão com os indígenas yanomami é a mais desafiadora.
“Não pensei duas vezes em vir pra cá. É uma alegria saber que posso contribuir para diminuir o sofrimento deles”, afirma. Mas a alegria se mistura com um sentimento de impotência. “Porque a gente vai sair e eles vão continuar. Eu tenho família e não posso ficar muito tempo”, emociona-se.
Para o enfermeiro, que passou boa parte da vida cuidando das pessoas, são os yanomami têm muito a ensinar sobre cuidado. “Que a gente passe a cuidar deles como eles cuidam da Mãe Terra”.